Monstros &Companhia
Entrevista cedida por Maria de Jesus Candeias à Revista Pais & Filhos, Dezembro de 2013.
Texto de TERESA DIOGO
Ilustração de CARLA ANTUNES
Os medos na infância são tão comuns quanto importantes para o desenvolvimento. Vão variando consoante a idade, mas todos requerem confiança e segurança.
O Rodrigo tem dois sprays anti-monstros no quarto, um em cima da mesa-de-cabeceira, não vá ser preciso atuar durante a noite, e outro no móvel dos brinquedos, para ter a certeza de que não é apanhado desprevenido enquanto brinca. Todas as noites, antes de ir para a cama, a mãe acompanha-o na ronda em busca de seres assustadores debaixo da cama, dentro do guarda-fatos, atrás do cortinado... Sempre com o spray mágico na mão. Só se deita depois de se certificar que não há nenhum monstro escondido. A mãe fica no quarto até ele adormecer e a luz de presença fica acesa a noite inteira. À falta de uma solução melhor, a mãe do Rodrigo, de cinco anos, resolveu munir o filho de uma ferramenta implacável contra os monstros imaginários que lhe causam tanto medo e que tornavam a hora de deitar num suplício. Inspirou-se nas ideias que encontrou na internet, agarrou num vaporizador vazio, enche-o de água, colou um rótulo apropriado a um produto anti-monstros e disse-lhe que agora já não precisava de ter medo: se aparecesse algum monstro, bastava usar o seu spray mágico! A ideia agradou-lhe e, embora ainda com algum receio, a ida para a cama assumiu contornos de brincadeira e tornou-se muito mais fácil. Ao mesmo tempo, a inspeção exaustiva ao quarto permite-lhe enfrentar o medo e verificar que, afinal, ali não há monstros.
A “técnica” do spray anti-monstros é usada por muitas famílias por esse mundo fora, como se pode constatar nos inúmeros mommy blogs que a sugerem. Para algumas crianças, como é o caso do Rodrigo, pode de facto ser uma grande ajuda e transmitir a tão desejada segurança para enfrentar as criaturas imaginárias, mas para outras esta estratégia pode não se revelar eficiente. Antes pelo contrário: a caça aos monstros significa que existe a possibilidade real de estar frente-a-frente com um deles e esta ideia é ainda mais assustadora. Por outro lado, a inspeção ao guarda-fatos ou debaixo da cama pode levar a criança a pensar que se os adultos estão à procura é porque os monstros existem mesmo. Ou seja, cada caso é um caso e o melhor é escolher a estratégia de ataque com bom senso, porque o que resulta para uma criança pode agravar ainda mais a ansiedade de outra.
“Os medos na infância são muito comuns, mas variam naturalmente de criança para criança, de acordo com as suas caraterísticas individuais e dos contextos. O mesmo estímulo pode ser ameaçador para uma criança e ser indiferente para outra. Além disso, um mesmo estímulo pode numa dada circunstância ser ameaçador para a criança e noutra situação ser-lhe totalmente indiferente”, sublinha Maria de Jesus Candeias, psicóloga clínica e psicoterapeuta infantil. Uma criança de três anos pode, por exemplo, ter medo de entrar sozinha numa sala cheia de crianças que não conhece, mas sentir-se completamente à vontade se estiver acompanhada pela mãe ou pelo pai.
O medo é um sentimento universal “que faz parte de todos nós e, em particular, faz parte do crescimento das crianças”. Transmite-nos a sensação de que corremos perigo e é geralmente acompanhado de sintomas físicos, “tais como aceleração cardíaca, vermelhidão e angústia”. Embora estes sintomas possam ser bastante incómodos, servem muitas vezes para “nos alertar do perigo e como tal para nos proteger”. Na verdade, sem a capacidade de sentirmos medo, dificilmente teríamos sobrevivido enquanto espécie. E esta função protetora e adaptativa é especialmente importante nas crianças. “É este medo que faz com que as crianças reajam a estranhos, não se aproximem de certos animais entendidos como perigosos, não se afastem dos pais em locais desconhecidos, evitem entrar em sítios escuros ou sintam a necessidade de recorrer a um adulto para o fazer. É este medo que faz com que as crianças se atirem para o colo da mãe ou do pai quando ouvem um barulho violento”, explica a psicopedagoga Daniela Sciaccaluga, sublinhando, porém, que “é importante que, uma vez cumprido o papel do medo de avisar o organismo do risco iminente e provocar uma reação ajustada, este diminua, caso contrário torna-se inútil e perigoso”. Numa situação “normal”, quando uma criança se apercebe, por exemplo, que afinal aquele barulho violento não se trata de algo ameaçador, o medo “deverá de imediato e naturalmente recuar”.
Das trovoadas às bruxas
A natureza dos medos varia consoante a idade da criança e há medos “típicos” em cada fase do crescimento. Assim, é natural que os bebés reajam com medo ao escuro, a ruídos fortes, a estranhos e ao afastamento da mãe ou do pai. Entre os três e os seis anos de idade são frequentes “os medos sobre as coisas que não são baseadas na realidade (como o escuro, monstros e fantasmas), animais, ruídos muito altos e estridentes”, esclarece Maria de Jesus Candeias, referindo que “ esses medos são transportados muitas vezes para a noite na forma de pesadelos”. Já o medo de perda dos pais é, geralmente, “transportado para a recusa escolar”. Nas crianças entre os sete e os 12 anos, os medos refletem circunstâncias reais que lhes podem acontecer: “É comum o medo da morte, de doenças, de catástrofes naturais”.
No apartamento em frente ao de Catarina, três anos, vive uma família simpática, com duas filhas pequenas, com quem a menina brincava, tardes a fio… até que ao agregado familiar vizinho se juntou um cão. Minúsculo, enérgico e meigo, que procurava apenas festas e colo. Mas, para Catarina, aquele é um ser demasiado assustador, que a deixa em pânico e sem saber onde se esconder. Deixou de visitar as amigas e tem pavor de se cruzar com o cão à porta de casa. “Sempre que saímos de casa, a Catarina esconde-se
atrás do sofá e obriga-me a verificar se o Óscar não está no hall. Só quando tem a certeza de que ele não está é que sai disparada, entra no elevador e implora-me que me despache a fechar a porta de casa e do elevador. Se demoro mais do que um minuto, desata aos gritos e a tremer, com medo que ele apareça. É inexplicável”, conta a mãe, sublinhando que Catarina nunca foi mordida por nenhum cão, nem passou por qualquer episódio traumático com animais. A mãe já lhe explicou que o Óscar é um bom cão, é inofensivo e
só quer ser amigo dela, mas Catarina encolhe-se só de ouvir falar nele. Se, por azar, se cruzam à entrada do prédio, Catarina trepa pela mãe acima, esconde a cara no seu pescoço e grita como se estivesse a ser atacada por um monstro. “É irracional e já não sei o que fazer para que ela perca este pânico. Evito a todo o custo que se cruzem, mas às vezes acontece… e é terrível”.
Os investigadores explicam que evitar situações que provocam medo é contraproducente, a longo prazo, porque impede as crianças de descobrirem que a situação que temem, afinal, não é assim tão assustadora. Ou seja, impede-as de aprenderem que são capazes de lidar com situações desafiantes e de controlar a ansiedade.
Os pais têm aqui um papel determinante: “podem e devem ajudar as crianças a enfrentar os seus medos, aumentando-lhes a confiança” e evitando que “evoluam para reações fóbicas”, esclarece Maria de Jesus Candeias. Em primeiro lugar, é essencial que reconheçam que o medo é real. Depois devem incentivar a criança a falar sobre o assunto, ajudando-a assim a “libertar-se da angústia” para que o medo se torne menos intenso. Expressões como “Não sejas ridículo! Não existem monstros no armário” são proibidas. “Nunca se deve menosprezar o medo da criança, nem forçá-la a superá-lo sozinha”, sublinha a psicoterapeuta infantil. “É importante que os pais olhem para os medos dos filhos como naturais e próprios do seu desenvolvimento e que aprendam, eles próprios, a relacionar-se com estes medos de forma descontraída”, acrescenta a psicopedagoga Daniela Sciaccaluga.
A criatividade e a brincadeira podem ser fortes aliadas na luta contra os medos. “No que toca ao medo do escuro, de fantasmas, monstros, bruxas diabólicas, por exemplo, sugiro aos pais que, em conjunto com os filhos, tornem esse medo concreto, lhe deem um nome, uma cara, um tamanho, um peso, enfim, que lhe dêem uma identidade e o coloquem no contexto real, fora da imaginação da criança, pois aí já poderão vê-lo, falar com ele, tocá-lo, construir histórias e chegar a finais felizes”, sugere a Daniela Sciaccaluga, referindo que “essas histórias podem ser de variadíssimas índoles: um jogo de futebol contra o medo, uma aventura em que o João fica amigo do monstro ao salvar o seu gatinho, a história do fantasma que afinal tinha era medo do João… Enfim, as possibilidades são infinitas, mas a ideia base é retirar o poder da bruxa, do monstro, do fantasma, do escuro ao humanizá-los e torná-los próximos da família, logo, num lugar concreto e controlável, sempre num contexto humorizado, divertido e descontraído”.
Na maioria dos casos, o medo é passageiro, próprio da idade e tende a desaparecer de forma natural. Contudo, quando se torna exagerado, desproporcionado, excessivamente intenso e persistente, acaba por resultar em sofrimento para a criança. Nestes casos, estamos já perante um quadro fóbico. “Uma fobia é um medo persistente e irracional que leva a criança a evitar a todo o custo, ou a suportar com um sofrimento enorme, situações, objetos ou atividades que são assustadoras para si. A fobia carateriza-se por um aumento da ansiedade a limites que impedem a criança de funcionar normalmente”, explica Maria de Jesus Candeias. De acordo com a psicóloga e psicoterapeuta, “as fobias nas crianças têm como pano de fundo a angústia de desamparo, o medo de abandono e as relações pais filhos pouco securizantes”. As crianças inseguras e com pouca autoestima “tendem a desenvolver mais frequentemente fobias”.
Estes medos irracionais e desproporcionados podem ser acompanhados de sintomas físicos (dificuldade em respirar, palpitações, suores, vómitos, diarreia, dores de estômago), sintomas cognitivos (preocupações excessivas, dificuldade de concentração), alterações de humor (irritabilidade) e variações no sono (pesadelos). Implicam por isso uma abordagem e acompanhamento profissional especializado. “Se for um episódio isolado, os pais não devem torná-lo mais significativo do que é, mas se surge um padrão que é persistente e muito intenso, devem tomar uma atitude, porque se não procuram ajuda, a fobia continuará a afetar a criança com consequências graves no seu processo de desenvolvimento e de socialização”, lembra Maria de Jesus Candeias. Cabe aos pais estarem atentos aos sinais e ajudarem a criança a desenvolver confiança para enfrentar os seus medos com naturalidade, antes que evoluam para reacções fóbicas. l
Se o seu filho está na idade do medo de monstros, fantasmas, bruxas e outros seres imaginários assustadores, saiba que há estratégias que o podem ajudar a superá-lo. A psicóloga Maria de Jesus Candeias sugere algumas dicas.
Durante o dia:
- Ajude o seu filho a certificar-se de que não existem fantasmas nem monstros debaixo da cama nem dentro do armário;
- Ajude-o a entender os sentimentos descontrolados que ocorreram durante o pesadelo;
- Explique e dê-lhe informações simples, claras e credíveis para que ele possa entender os acontecimentos da vida familiar que possam estar a perturbá-lo;
- Evite filmes, programas de televisão e jogos de computador que possam ser violentos e provocar medo, insegurança ou incompreensão.
Na hora de dormir:
- Sente-se junto dele e explique-lhe o que o preocupa;
- Aceite os seus receios e a necessidade de se agarrar aos pais;
- Deixe uma luz de presença no quarto;
- Encoraje-o a usar objetos de conforto (ursinho ou cobertor preferido);
- Conte histórias que ajudam a compreender os medos e sentimentos vivenciados de forma indireta;
- Se ele recorre à cama dos pais, depois de um pesadelo, deve acalmá-lo e levá-lo de volta a cama dele, onde lhe deve dar alguns minutos de aconchego e conforto.
Entrevista cedida por Maria de Jesus Candeias à Revista Pais & Filhos, Dezembro de 2013.
Texto de TERESA DIOGO Ilustração de CARLA ANTUNES